Leituras de Almanaques: O Cordãozinho e o Jeca

  • 17:33
  • 15 abril 2016


  • Escrever a história do almanaque e de seus leitores tem significado traçar os caminhos de uma determinada busca histórica. Uma busca que só tem podido se concretizar quando se recuperam os espaços em que oposições como: desqualificação/qualificação do material impresso; valorização/desvalorização de espaços de leitura e de maneiras de ler se configuraram.


    Para escrever parte dessa história foi preciso rastrear o passado atrás de velhos almanaques, recriar maneiras de ler e gestos de leitura hoje já esquecidos, mas, principalmente, compreendê-los em seus significados e valores. E depois, ao entendê-los no presente, confrontá-los com a sua circulação e permanência, com as suas representações de cada época.

    Sem risco de engano, o Almanaque é, desde que apareceu até o presente momento, algo que nunca deixou de ser atual. Uma das provas disto são três reportagens publicadas no jornal "Folha de São Paulo" durante o ano de 1993 e que fazem alusão à cultura de Almanaque, relacionando-a ao tema utilidade-inutilidade. Par quais leitores? Talvez para os leitores da atual "Folha de São Paulo" que hoje lêem ou mesmo conhecem almanaques através do Almanaque Abril ou relacionando-a a simples conceitos de utilidade/inutilidade.
    Porém, antes de discutir o implícito da desqualificação apresentada, queremos colocar que não há um só Almanaque. Existem diferentes almanaques produzidos em diferentes épocas, mas sempre configurando toda uma relação histórica de pessoas e de suas leituras naquele dado momento. Ao estudarmos a história do almanaque, podemos mesmo perceber como a sua história é inseparável das formas de representação de uma época.



    O almanaque trata de divertimentos, informações, atualidades, saber, porém são os seus significados, recriados na e pelas leituras, de seus leitores, que configuram os espaços/os tempos dessas épocas. O almanaque tem se relacionado, na sua história, à criação de uma mitologia e de um simbolismo que não tem mudado muito no curso dos séculos, se revermos as histórias de alguns almanaques.
    No Brasil, em 1887, o Pharol da Medicina, elaborado com o patrocínio da Drogaria Granado do Rio de Janeiro, foi o modelo dos almanaques de farmácia para os sucessores já com a tiragem de 100.000 exemplares. Nessa época, segundo o censo, o número de habitantes da cidade era de 782.724. Considerando tais números, aliados ao fato de que, para cada almanaque há um mínimo de 4 leitores, teríamos um total de 400.000 leitores!

    Também havia nesta época almanaques em outros estados do Brasil., tais como: Almanack da Comarca de Lorena para 1882, Almanack do Correio de Campinas para o anno de 1886. Uns eram mais ou menos restritos à agricultura, comércio, religião, charadas, estudos genealógicos, sobre cidades, anuários históricos e religiosos. Sendo que nos anos de 1890, 1891 e 1892 foram editados almanaques no Rio de Janeiro com o título: "Almanach das Fluminenses", destinado às senhoras.
    Por isso, a definição de almanaque de Bollème (1969), ultrapassa alguns conceitos de material impresso: "Para definir o Almanaque, salientamos o seguinte: ele não é um manual, ele não é assimilável de forma muito diferente do que é um romance, ele diverte sem se prender à pura fabulação, ele ensina sem ser dogmático, ele não é, de modo algum, artigo de fé, ele obedece a uma grande lei que é sem dúvida aquela de toda leitura popular, é prazeroso e é útil". (página 40).

    Não sendo um livro, não sendo um manual, não sendo artigo de fé, o que seria, então, o almanaque? E como seria a história desse material impresso, como fonte ou única testemunha do encontro que, como tal, mediatizou e permitiu a relação leitor e texto? Como, nessa perspectiva, esse material impresso foi se modificando ou como foram se modificando as épocas de suas leituras?
    O presente texto, ao confrontar a leitura do almanaque feita pela reportagem do jornal dos anos 60 e a leitura de um leitor de almanaques, busca configurar, através dessa análise não só maneiras de ler e de se apropriar-diferenciadas do mesmo objeto-almanaque como também relacioná-las às transformações históricas, fundamentais para compreensão dessa década.


    No dia 21/05/69, o jornal O Estado de São Paulo publicou uma reportagem intitulada "O velho almanaque vai fazer 50 anos". A reportagem, em seus diversos parágrafos, nos fornece vários elementos e condições para que os significados do objeto-almanaque possam ser configurados em suas representações, nas décadas de 50 e 60. Assim, no início, um pequeno histórico, informa que, ao completar 50 anos a comemoração será marcada com uma edição de 3 milhões de exemplares, alcançando uma tiragem total de 80 milhões de exemplares. Tal edição terá anedotas e desenhos do irmão de Ziraldo. Quantos seriam os seus leitores em uma década ainda não marcada por projetos de alfabetização é a nossa primeira indagação. A seguir, vêm seus subtítulos: Muitas cartas, O cordãozinho, Evolução, Ele sobrevive. Esses subtítulos são entremeados com a história do Jeca Tatuzinho, que, no meio da reportagem é escrita em rimas.

    "Numa casa de sapé
    Lá na beira do caminho
    com dois filhos e a "muié"
    Mora o Jeca Tatuzinho
    No terreiro uma galinha
    um galo velho e um leitão
    e o quintal sem plantação
    Jeca vive descansando
    Nunca tem disposição
    Passa o dia se espreguiçando
    Diz que pro trabalho
    Não tem vocação
    Numa tarde que chovia
    Um doutor por lá passou
    Vendo Jeca que sofria
    Um remédio receitou
    E lhe disse: meu amigo,
    Não ande mais de pé no chão:
    Sua doença é amarelão
    Jeca comprou sapato
    Prá família e prá a toda a criação
    Dava gosto a gente "vê" galinha
    de botina e galo de botinão.
    Quem passar pelo caminho
    Fica logo admirado
    Já não tem mais o ranchinho
    No lugar tem um sobrado
    Hoje em dia, o Tatuzinho
    É o maior dos "fazendeiros"
    Tem saúde e tem dinheiro
    Sua história é uma lição
    Prá quem anda de pé no chão
    Sapato no pé prá não "entrá" os "bichinho"
    É a receita do Jeca Tatuzinho.

    Os subtítulos, na verdade, correspondem tanto a informações como às cartas que seriam recebidas diariamente, em número de 30 a 40.

    A "Evolução", é mostrada através de piadas. Nelas se observa a presença de carros, palavras francesas (1941), valorização do dinheiro (1951), referências à arte moderna (1954), componentes culturais de cada época. O tópico: "Ele sobrevive" informa sobre a história do almanaque colocando que, em 1920, os almanaques estavam no apogeu e que hoje (1969) quase não existem. Segundo a reportagem, passaram de moda, mas esclarece que, apesar disso o almanaque Biotônico não pretende interromper a trajetória.

    Porém, talvez o mais importante nesta reportagem sejam alguns tópicos, fundamentais para a compreensão das modificações de leitura que começava a sofrer o almanaque na década de 60. Como no caso do Cordãozinho.

    "O cordãozinho:
    Agenor Lopes Silva conta a maior bronca que o Almanaque já recebeu até hoje:
    - Desde 1920 até 1954, os Almanaques vinham com um cordão que servia para pendurá-lo na parede. Isso ficava muito caro. Não havia máquina para fazer o serviço, e os cordões eram amarrados um a um. Dava um trabalho tremendo, além do preço sair muito alto. A edição de 54 foi a última que veio com cordão. Recebemos diversas cartas reclamando contra essa alteração. Mas, não havia jeito."
    O Cordãozinho para o gerente, na reportagem do jornal, é analisado, como algo dispendioso pois não há máquinas para colocá-lo. Os cordões eram colocados um a um, dando um trabalho tremendo, além do preço sair muito alto. Reflexão do ponto de vista do custo e da não possibilidade da mecanização de um trabalho. Se antes era indiscutível que tal colocação fosse manual, uma forma artesanal, na época com o processo de industrialização batendo às portas, torna-se inviável o artesanal dentro de um laboratório que se moderniza para acompanhar um ritmo de crescimento inevitável.

    Analisando-se a época, pode se relacionar o cordãozinho com determinados objetos escritos. Passando de um modelo de sociedade agrária, para um modelo industrial desenvolvimentista, a alfabetização se torna necessária. Com ela modifica-se o objeto livro para adequá-lo a tais finalidades. Ou seja, ao tirar o cordão, transformo também o objeto almanaque, colocando-o próximo do livro. Diferente de uma folhinha ou de um calendário, palavra sinônima, muito mais próximo de modelo de sociedade oral, mais voltada para os valores rurais. Ao suprimir o cordãozinho retira-se do almanaque quaisquer semelhanças com as folhinhas de parede.



    Ao nos referirmos à importância desse tópico, estamos relacionando os seus significados à leitura e a utilização desse mesmo cordãozinho por um leitor de almanaque, Seu Vicente, nascido em 1916, em Agudos, Estado de São Paulo, que nos contou a sua história de leitura do almanaque.

    "Meu pai era colono da Fazenda de café lá prás banda de Agudo. Minha mãe cuidava da casa. Foi escrava. Minha avó veio de Angola pra cidade de Rezende, no Rio de Janeiro. Naquele tempo lá era tudo fazenda.
    Minha mãe era marcada a ferro no seio. A sinhá sabe que era costume? Era sim. As bonita. As patroa tinha ciúme e mandava marcá... Tanto meu pai como minha mãe, não estudaro. Tudo o que ensinava era falando. Mas levaro os filho prá escola. Todos. Leva levaro. A primeira vez que vi um armanaque foi no orfanato. Acho que era 1928. Eles mostrava prás criança, prá num andá discarça.
    O que era de mais interesse era a história do Jeca Tatu. A professora aproveitava...
    Lá se usava os remédio indicado nele.

    No orfanato tinha o livro Sagrado e o armanaque. A professora ensinava a chave. Eu quero dizê, as letra. Elas acaba sendo a chave, sem elas ocê num entra. Num lê. Aí eu procurava as letra no armanaque. Quando eu cresci, fui trabalhá em São Paulo, na casa da Familia Mello. Meu serviço era de page. Ouviu falá? Eu cuidava dos filho deles. Lavava, trocava e levava prá escola, a pé. Naquele centrão de São Paulo, onde hoje, só tem prédio. Era tudo casa, mato, tinha bonde. O caradura era bonde onde ia os pobre. De pé. Era muito mais barato que os outro.
    Lá tamém tinha o armanaque. Como ele tinha muito desenho eu usava prás criança estudá, copiando as palavra e olhando nos desenho.

    Fazia lição com Jeca Tatu. Prá ensiná as palavra do armanaque. Essa família me levou conhecê Campos do Jordão, Rio de Janeiro. Eu viajava com eles. Me tratavam como iguá.
    Na casa tinha uma bibrioteca. Quando as criança dormia, a patroa, que era muito boa, me deixava ir lá. Eu pegava o Livro Sagrado e ia juntando as letra até vê as palavra.
    Foi lá que eu conseguia lê o gibi do Tin-Tin que eu gostava.
    Aí eu casei e fui pro sítio prantá. Fui embora. Casei.
    E o jeito era o armanaque. O único lugar prá saber quando e o que prantá
    Nem é só isso. E nome pros filho? Tirado do Livro Sagrado e dos armanaque.
    As criança andava tudo carçada. Aprendi lá. Prá não dá bicho.
    Lá no sítio, nóis punha uma cordinha e o armanaque ficava pindurado no guarda-comida. Preso. Fáci de pegá. Quarqué um que chegava prá perguntá quarqué coisa, tava aí. Só olhá!
    Tudo a gente olhava nele.
    Eles davam na Farmácia. Era só comprá quarqué coisinha e vinha armanaque. Pelo que lembro ele tinha sempre uma capa iguá.
    Todos na casa interessava. Aqueles que conseguia lê um poco, lia pros outro. Assim né, de ouví e vê, acabava sabendo e lia.
    Juntava as criança em roda. Contava em voz alta. Misturava as história.
    Sabe sinhá, é que nem hoje novela. Antes a gente contava as história. Repetia, repetia que nem a novela. Repetia a história. As pessoa de idade também gostava de ouví. Não era só criança não.
    As vizinha, quando queria receita de coisa de comê, vinha. Olhava, escutava, ia e fazia. Vinha sempre receita da coisa de cozinhá.
    Sinhá, o armanaque era que nem a gente tê um médico em casa. Sabe como é. Os meninos sempre tem dor de barriga, as gripe, chiadeira, aí é só ir e olhá o que é bom. É dá e pronto.
    Sabe sinhá, co perdão da palavra, mas a sinhá é estudada... Coisa de mulhé. Remédio prás mulhé. Tudo lá.
    Agora eu tô aqui lembrando, até o circo usava o armanaque. Tinha um palhaço. Eu vi uma vez. Ele se vestia de Jeca Tatu e fazia as história dele.
    Muita coisa era guiada pela mão do armanaque!"

    Para o seu Vicente, o cordãozinho era a cordinha:

    "... Lá no sítio, nóis punha uma cordinha e o armanaque ficava pindurado no guarda-comida. Preso. Fáci de pegá. Quarqué um que chegava prá pergunta quarqué coisa, tava aí. Só oiá! Tudo a gente oiava nele".

    A importância do tal cordãozinho para o seu Vicente decorre de sua incorporação, materialização, como parte do objeto almanaque. Para nós, delineia uma determinada apropriação de leitura, comum nas décadas anteriores à industrialização e a expansão do livro nos anos 60.
    Por que pendurá-lo? Para garantir a manipulação pela junção das folhas pelo barbante, uma vez que sua constituição é frágil e seu papel é barato? Ou seria uma tentativa de elevá-lo ao estatuto de calendário, utilizado diariamente e que, para tal, necessita estar à vista?

    É o calendário que se prega. Fica aos olhos, se torna cotidiano, substituido a cada começo de ano como num eterno recomeço. Assim também pode ser o almanaque, numa mistura de tempo e de leitura.

    Mas, por essa e outras entrevistas, no meio rural, a cozinha era o lugar privilegiado. Era o lugar do encontro nos momentos que sucediam o trabalho cotidiano da roça. E ali, entre um bocado e outro, de broas de milho, aipim e jerimuns, o almanaque informava, divertia, dava asas à construção de uma leitura ouvida, vista nos desenhos, brincada nas personagens, gravada na memória, assistida no circo enquanto história do Jeca. Porém, era um valor. Inserido na cotidianeidade, o almanaque era qualificado. Significados eram criados. Ele era o médico, o conselheiro, ele indicava o que plantar. Pendurá-lo por um cordãozinho valorizava e elevava um determinado objeto.

    Sacraliza-se mesmo, o almanaque como um objeto que representava e representa, no meio rural, o universo da escrita até os presentes dias. Muitas vezes tinha como companhia o Livro Sagrado, mas geralmente era o único objeto desse mundo da escrita. Como tal, representava para seus possuidores o contato com esse outro mundo entremeado de poderes e perplexidades.

    O cordãozinho para o seu Vicente marcava um lugar de leitura delimitando ao mesmo tempo um espaço para as práticas dessa leitura. Através de gestos, como o de folhear, através de imagens que remetiam à textos, geralmente bem curtos.

    Para o gerente, o cordãozinho era algo ultrapassado e custoso, para seu Vicente era um elemento de valorização desse mesmo mundo da escrita, que percebia leitores como ele, como não-leitores ou analfabetos. Um cordãozinho separava esses dois mundos.



    A imagem do Jeca no jornal, aparece em três momentos distintos da poesia. Num primeiro momento:
    Numa casa de sapé
    e o quintal sem plantação
    Jeca vive descansando
    Nunca tem disposição
    Passa o dia se espreguiçando
    Diz que pro trabalho
    Não tem vocação

    Nesses versos o Jeca representava o atraso da casa de sapé-rural, a inépcia para o trabalho, características inadmissíveis para o novo modelo econômico. Mas:


    Um doutor por lá passou
    Um remédio receitou
    Não ande mais de pé no chão:
    Sua doença é amarelão
    Jeca comprou sapato

    Há chances para ele, há "remédio". É só ouvir o médico, calçar-se, distanciar-se do chão, da terra que traz as pragas, que lhe corroi as vísceras. Afastar-se. É só higienizar-se, ter um corpo saudável, apto para o trabalho, para o progressso.
    Ouvindo os conselhos:


    Já não tem mais o ranchinho
    No lugar tem um sobrado
    É o maior dos "fazendeiros"
    Tem saúde e tem dinheiro
    Sua história é uma lição

    O Jeca obediente, higienizado, tem bom corpo para o trabalho e progride. Chega ao sobrado, característico da metrópole. Sobrados-casarões, das grandes avenidas que acomodam os ricos proprietários-fazendeiros que abandonam suas fazendas para buscar o novo status social que a grande cidade lhe oferece.

    Portanto a maior lição é a de que ele só pode mudar transformando-se, negando seu barraco de sapé, seu corpo-bicho, seu estar no chão, rente à terra, tatú, para estar cada vez mais distanciado dela pelos andares das casas e pelas máquinas agrícolas.

    A terra contamina. Os novos ideais da cidade transformam e libertam. Sendo assim, grandes contingentes, na década de 60, afluem às cidades formando o grande grupo de mão de obra disponível e criando a necessidade de projetos de alfabetização para a devida adequação neste novo universo.

    Não há saida na terra, para o piolho da terra, tatú que a tem por abrigo, aconchego. Atraso.
    Já para seu Vicente a representação do Jeca Tatú e a sua apropriação como imagem percorre outros caminhos.
    "...O que era de mais interesse era a história do Jeca Tatu. A professora aproveitava...
    ... Aí eu procurava as letra no armanaque.
    ... Como ele tinha muito desenho eu usava prás criança estudá, copiando as palavra e olhando nos desenho.
    ... Fazia lição com o Jeca Tatu. Prá ensiná as palavra do armanaque.
    ... Juntava as criança em roda. Contava em voz alta. Misturava as história.
    ... Sabe sinhá, é que nem hoje novela. Antes a gente contava as história. Repetia, repetia que nem a novela. Repetia a história. As pessoa de idade também gostava de ouví. Não era só criança não.
    ... até o circo usava o armanaque. Tinha um palhaço. Eu vi uma vez. Ele se vestia de Jeca Tatu e fazia as história dele ..."


    Para seu Vicente, o Jeca é o elemento que marca a passagem do mundo oral para o mundo da escrita. Ele, em parte, representa o seu mundo oral/rural. Está com ele no orfanato e na roça. No orfanato, o uso das letras nas cópias. Na roça, ensina com o almanaque contando em voz alta. Já na biblioteca são as marcas do espaço do livro. Primeiro com o Livro Sagrado e os gibis do Tin-Tin. Nestes se percebe uma época ainda matizada pela influência da cultura francesa. Por outro lado, fazer a lição com o Jeca significava buscar ajuda nas táticas utilizadas na história contada, re-contada, para só assim poder penetrar no mundo da escrita do qual se acredita distante. Misturando histórias. Do que lê e está escrito no almanaque e do que sabe e está escrito na sua memória oral. Com a história do Jeca, misturam-se história do mundo escrito e do mundo oral. Uma personagem criada por um escritor em uma história escrita é apropriada em histórias na oralidade e é ela que permite a identificação com o mundo letrado por pessoas consideradas analfabetas. E, entre esses campos culturais se delineam a história e o Jeca, como elementos de passagem. O almanaque como o suporte material permanente entre esses dois universos. De um lado o almanaque, de outro, também o almanaque, mas junto com a bíblia ou com o livro e os gibis. Pelo almanaque a roça se aproxima da biblioteca.

    No sítio, volta-se ao espaço marcado pela oralização. Contar história, misturando, repetindo como novela. Um espaço que possibilita a invenção de artes de fazer-tecer o cotidiano, quentes, marcantes da oralidade.

    Há também o espaço de leitura da encenação do Jeca no circo. Uma leitura espetáculo onde o papel é o picadeiro e as letras e o ritmo inscrevem-se no corpo do palhaço. Suportes materiais de memória para uma história oralizada.

    O Jeca "invade" o social, a escola, o circo, o rádio e o texto é ouvido, visto, desenhado, e memorizado, para ser enfim, lido.

    O cordãozinho permanece até 54. O panorama sócio cultural da década de 60 altera-se. O editorial para o almanaque de 1960 traz em sua abertura uma referência ao São Paulo de hoje, uma metrópole que abriga cerca de 3,5 milhões de habitantes. Salta aos olhos as propagandas da torre da rádio Tupi do Rio de Janeiro, Rádios, pilhas, TV. Conselhos para um mobiliário moderno. Grandes mudanças se comparamos com os almanaques da década de 50 com predomínio rural.

    Altera-se uma sociedade, altera-se o objeto almanaque, alteram-se práticas de leitura e neste espaço, de um país que implementa sua indústria e inscreve-se no progresso, o barbante perde significado.
    Neste momento, aos calendários pregados balouçantes e manuseados sucedem-se quadros nas residências e o almanaque ganha outros lugares que não à vista dos olhos, em espaços predominantemente rurais onde as práticas de leitura se aproximam de um acontecimento festivo e coletivo.

    Margareth Brandini

    http://www.unicamp.br/

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